Veja como é comer, em cinco dias, em metade dos restaurantes três estrelas de Paris
PRISCILA PASTRE-ROSSI
EM PARIS
Cérebro de cordeiro na Síria. Espetinho de coração de boi no Peru. Buchada de bode na Paraíba. Formiga na Amazônia. Há dez anos viajo para comer. Mas faltava algo.
Jantar nos exclusivíssimos "trois etoiles" (os três estrelas) parisienses. Mais que isso. Estava decidida a conhecer o maior número deles -são apenas dez endereços nessa categoria na cidade.
Para meu plano dar certo foi preciso uma estratégia. Parte 1, reservar: mandei os primeiros e-mails cinco meses antes. Parte 2: o dinheiro.
Em restaurantes desse naipe, no jantar, o menu-degustação nunca sai por menos de € 240 (R$ 594). Por pessoa. Sem bebidas. Valor que facilmente dobra.
Quem pagou esse pato (e o cordeiro, e o foie gras, e o champanhe, e os armanhaques) foi minha moto, uma Shadow 600cc 2000.
Comprada há cinco anos, mais para pegar a estrada rumo ao interior nos finais de semana, ela andava meio encostada.
E a conta era quase exata: cinco jantares divinos para um casal, com vinhos e o que mais fosse necessário, equivaliam a uma Shadow.
Além de fazer as reservas e ter o dinheiro, havia um terceiro item para meu festim à Babette dar certo. Roupas à altura.
Assim, o primeiro dia em Paris incluiu percorrer 14 estações de trem até um outlet fora da cidade em busca daquele que seria o uniforme de uma semana. Um vestido, uma jaqueta e um terno de grife.
Esse kit, com algumas pequenas variações, seria usado nos cinco jantares.
O PRIMEIRO JANTAR
Atravessamos o saguão do hotel Bristol em direção à porta do Epicure. Pontualmente às 20h30 de um domingo.
J.B. Leroux/Divulgação | ||
Ambiente do restaurante três estrelas Epicure, comandado pelo chef Eric Frechon |
Deixo meu casaco na entrada e sou levada a uma mesa no meio do salão, à esquerda de quem entra.
Era domingo à noite -quando, entre os dez três estrelas de Paris, só o Epicure abre- e em 20 minutos não haveria mais lugar disponível. O chef Eric Frechon serve 40 comensais por noite.
"Champanhe?" Foi a primeira pergunta. Não saber o preço dá frio na barriga. Mas era o primeiro jantar. E tinha a grana da moto. E era aniversário dele. "Sim, champanhe."
O menu tinha oito pratos, mas sempre há duas ou três pequenas atrações que chegam antes.
Desfilaram pela mesa ouriço-do-mar com musse de ovo; massa com trufas negras e foie gras de pato; vieiras; cordeiro com nhoque de ervas; queijos; sorvete de lichia, manjar de chocolate e... -ufa!- para acompanhar o café, os indefectíveis "macarons"!
Os do Epicure têm a fama de ser os melhores de toda Paris (e, a despeito de eu não ter provado todos os "macarons" da cidade, ouso dizer: são mesmo!).
Para o "grand finale", uma dose de armanhaque -destilado da região de Armagnac, no sul da França. O daquela noite foi um Laberdolive 1972. Sou seis anos mais nova.
Saí com uma certeza: havia valido a pena, e mesmo que todos os demais jantares decepcionassem, o primeiro havia sido incrível. E uma pergunta: seria possível superar o Epicure?
O SEGUNDO JANTAR
A reserva no Arpège tem de ser feita por telefone. Nada de e-mail. Aproveitando a ligação, perguntei: "Qual o traje ideal?". A resposta: "Aquele com que você se sente confortável". Bom, você entendeu, né? Um bom terno e seu melhor vestido.
Philippe Vaures/Divulgação | ||
Restaurante Arpège, do chef Alain Passard |
Ali, naquele ambiente elegante, paguei meu melhor mico -e adorei. Ao ver o chef Alain Passard de mesa em mesa, pedi para tirar uma foto. Simpático, abriu um sorriso enorme, me abraçou como se fôssemos velhos amigos, tirou a foto e... sumiu!
Deve ter ido para a cozinha, de volta ao seu reino vegetal. Passard é famoso pelo trabalho com legumes e verduras -todas saídas de uma das suas três hortas. Ele diz que o Arpège é autossuficiente em vegetais, ervas e frutas vermelhas e pretas.
Desde 2001 não serve carne. No máximo, frutos do mar, peixe e frango. Sua brigada de 15 cozinheiros faz o comensal descobrir o verdadeiro sabor de cada alimento. Da cenoura. E da beterraba. E do rabanete... Nada de pirotecnia. A cozinha de Passard conquista pela técnica e pela simplicidade.
Há dois anos estive ali, para um almoço. Até então, meu único três estrelas no currículo. Havia sido divino. Mas jantar foi algo ainda superior.
O TERCEIRO JANTAR
Há três menus-degustação no Guy Savoy, restaurante que leva o nome do chef: o de nove, o de 11 e o de 18 pratos. "O de 18 pratos, por favor."
Owen Franken/Corbis | ||
O chef Guy Savoy em seu restaurante, que oferece opção de menu-degustação de 18 pratos, em Paris |
Chegamos às 19h30, saímos quase à 1h do dia seguinte. Foram cinco horas e meia de refeição. Mais ou menos, um prato a cada 18 minutos!
Lá pelo fim dos primeiros 90 minutos chegou um ovo. Oba! Adoro ovos. A casca estava intacta. Ao ser quebrada, nem gema nem clara. O que me fez suspeitar de que estivesse sendo vítima de um número de ilusionismo.
O ovo estava cheio de creme zabaione! Ele aparecera ali, como mágica, para acompanhar o prato de aspargos e caviar que acabara de ser servido.
Uma surpresa seguida de outra surpresa. Os pontos altos foram um coração de pato e um rim de cordeiro praticamente cru - só selado.
Noite encerrada com queijos, quatro (sim, você leu quatro) sobremesas, "macarons", café, armanhaque... A mais áspera das contas (gastamos € 1.437, cerca
de R$ 3.556) e uma sensação indescritível de que havia valido cada centavo.
O QUARTO JANTAR
O quarto endereço foi o Alain Ducasse au Plaza Athénée. Se você nunca entrou lá, pense num lugar luxuoso. Multiplique por dez. É algo assim. Lustres realmente enormes, formados por uma infinidade de gotas de cristal que parecem chover do teto.
O ambiente é majestoso. E intimida. Mas o menu-degustação, de pratos assinados por Ducasse e executados pela equipe do chef Christophe Saintagne, não acompanhou tamanha pompa. Pelo menos, não naquela noite.
Apesar do verdadeiro balé dos 55 garçons servindo cerca de 50 pessoas, alguns pratos demoraram para chegar. E, por pelo menos uma vez, foi preciso chamar o garçom para repor o vinho.
Nada grave caso algum prato fosse especialmente marcante -apesar de todos, principalmente o cozido de lagostas com batatas, terem chegado à mesa com cozimento correto e bastante saborosos.
Talvez eu esteja sendo severa demais. Penso até que se tivesse ido só nele, já seria um dos melhores jantares da minha vida. Mas a concorrência da semana era poderosa.
Saí pensando mais nos lustres, nos talheres em ouro e prata e nas belas louças assinadas por designers famosos, como o francês Pierre Tachon e o japonês Shinichiro Ogata, do que na comida.
O QUINTO JANTAR
O ponto final dessa turnê inesquecível foi o Le Pré Catelan, do chef Frédéric Anton. Dos cinco endereços três estrelas visitados, foi o de menu-degustação mais em conta: € 240. E um dos mais agradáveis e surpreendentes.
A noite no restaurante -instalado num hotel em meio ao Bois de Boulogne- começou com caranguejo desfiado coberto por caviar. Foi servido em uma latinha pra lá de charmosa, cuja tampa trazia o nome do lugar. Deu até vontade de pedir para levar.
O prato seguinte também não veio numa louça, mas numa pedra quente. Era uma vieira cozida em suco de maçã e nozes torradas moídas.
O último prato salgado do tour pelos estrelados foi uma bochecha de porco cozida em especiarias com batata.
Depois, o maître lotou um prato com seis tipos de queijos. Para terminar a noite, o que parecia uma perfeita maçã verde de porcelana. Quando quebrada, revelava um suflê gelado de caramelo, sidra e um açúcar que estoura na língua (lembra do Dipnlik?).
TUDO DE NOVO
Quando você constata que o jantar menos marcante da semana já está entre os melhores da sua vida é porque a experiência valeu a pena.
Saí desse tour com três quilos a mais, menos dinheiro na conta e uma certeza: faria tudo de novo. Valeu, Shadow.
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