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domingo, 30 de outubro de 2011

Nada justifica o horror do linchamento de Kadafi, que deveria ser entregue a julgamento. Barbárie dá ideia do que pode ser a “nova” Líbia




Coluna do

Ricardo Setti.    




28/10/2011

 às 20:57 \ Vasto Mundo

Nada justifica o horror do linchamento de Kadafi, que deveria ser entregue a julgamento. Barbárie dá ideia do que pode ser a "nova" Líbia

Frame grab of former Libyan leader Muammar Gaddafi, covered in blood, being pushed to the ground by NTC fighters in Sirte

O ex-ditador Kadafi, já muito machucado pela turba: horrendos atos de barbárie que nada, nada justifica (Foto: tv líbia via Reuters TV)

Amigos do blog, sei que entro tarde no assunto – o ditador Muamar Kadafi morreu linchado na quinta-feira, 20.

Mas preciso escrever o que se segue.

Fui dos que comemorei, um tanto precocemente, a queda de seu regime. Veja este post de 24 de agosto deste ano, que republiquei recentemente, em que celebrei, já no título: "Kadafi na Líbia: o fim de um déspota, assassino e ladrão é motivo para comemorar".

Cenas pavorosas gravadas por celulares

Mas nada – nada – justifica a sucessão de horrendos atos de barbárie que levaram a seu massacre físico, em cenas pavorosas gravadas precariamente por telefones celulares.

"O que fizeram com Kadafi nos torna mais desumanos", resumiu esse santo homem que é o Prêmio Nobel da Paz e arcebispo anglicano emérito da Cidade do Cabo, Desmond Tutu, herói na resistência pacífica mas implacável ao regime racista do apartheid na África do Sul, emmagnífica entrevista que concedeu ao site de VEJA ao lado de Mary Robbins, ex-presidente da Irlanda e ex-Alta Comissária da ONU para Refugiados. "Espero que um dia possamos nos redimir."

O arcebispo Tutu (à esquerda, Mary Robbins): "Espero que um dia possamos nos redimir" (Foto: Marcos Michael)

De fato.

Dificilmente se conhecerá em detalhes o que ocorreu com o ex-ditador, mas vou tentar um rápido resumo do que se sabe.

Na quinta, 20, com o cerco dos rebeldes apertando em torno de sua cidade natal, a litorânea Sirte, a meio caminho entre Bengazi, a leste – a capital dos rebeldes – e Trípoli, capital do país, a oeste, Kadafi, escondido em algum lugar nas redondezas, começou a empreender uma fuga em direção mais a oeste, rumo à fronteira da Argélia ou da Tunísia. Ele seguia em um comboio de dezenas de veículos militares, que incluíam blindados de transporte de tropas, caminhões e pequenos tanques.

Não se sabe o que pretendia. Talvez fosse ser resgatado, já dentro da fronteira de um dos vizinhos, por um avião das forças que ainda lhe eram leais, e conduzido a algum país onde obtivera secretamente refúgio.

O ataque dos jatos franceses

A coluna foi divisada por caças da Força Aérea da França, conforme informou o ministro da Defesa francês, Gérard Longuet. Por mandato da ONU, a França foi um dos países da OTAN, a aliança militar ocidental, que começou a atacar as forças de Kadafi a partir de fevereiro com o objetivo de "proteger a população civil" rebelada contra o regime das investidas dos militares líbios. Segundo o governo francês, os pilotos franceses não sabiam que Kadafi estava no comboio mas, como parte de sua missão, investiram contra o comboio militar.

O ataque paralisou a coluna em seu deslocamento, e aí teria sido alcançado pelos insurgentes. Os combatentes destruíram os veículos, afirmou Longuet, "dos quais saiu o coronel Kadafi". Há versões de que Kadafi e um grupo leal afastaram-se do comboio, incursionaram por um oásis ou arvoredo que haveria na região e o ditador acabou sendo localizado oculto em manilhas de água pluvial existentes na região. Um miliciano rebelde, Salem Bakir, jura que Kadafi implorou que não o matassem.

icc

A sede do Tribunal Penal Internacional, em Haia, na Holanda (Foto: Divulgação)

Socos, pedradas, pancadas, tiros, cabelos arrancados…

Não se sabe. O que é absolutamente certo é que o ditador for aprisionado vivo e massacrado em seguida. No momento da captura, Kadafi já teria ferimentos de bala em uma das pernas e num ombro. As emissoras árabes de TV Al Jazira e Al Arabiya transmitiram imagens em vídeo nas quais o coronel, apesar da precariedade das gravações, feitas visivelmente em meio a empurrões e tumulto, aparecia ferido, principalmente na cabeça, mas vivo e sendo empurrado e golpeado.

O horror continuou sem ter sido gravado, mas ele recebeu socos, pedradas, pancadas de armas, tiros, teve cabelos arrancados e foi empalado com um cabo de madeira. Um laudo de autópsia realizado na cidade de Misrata, para onde os milicianos levaram o corpo, reza, secamente, que ele morreu por "disparos na cabeça e no abômen".

Cadáver exposto de maneira ignóbil, como um troféu

Em Misrata, de maneira ignóbil, o cadáver ficou exposto durante quatro dias, como um troféu, enquanto rebeldes, curiosos e todo tipo de gente o fotografava ou se deixava fotografar ao lado dos restos, sorrindo, como se se tratasse de um piquenique.

Horror, horror, horror.

O Conselho Nacional de Transição – que Deus sabe o que controla, entre grupos armados de diferentes orientações, sem hierarquia, sem disciplina, sem tradição alguma de democracia e de Estado de Direito – promete "investigar" a morte do ex-ditador e punir os culpados.

Acredito tanto que isso se faça corretamente como numa viagem a Plutão de bicicleta.

A entrega ao Tribunal Penal Internacional seria o caminho civilizado

Kadafi tinha contra si uma ordem de captura emitida em junho pelo Tribunal Penal Internacional de Haia, por crimes contra a humanidade cometido a partir do levante popular de 15 de fevereiro contra seu regime. A ordem incluía o segundo de seus oito filhos, Saif al Islam, e seu cunhado, Abdullah Senusi, chefe dos serviços secretos do regime.

A prisão e a entrega, incólume, do ditador para um julgamento civilizado, como são os valores que o Ocidente diz reverenciar, teriam sido a forma de o Conselho Nacional de Transição se afastar do caminho da barbárie e exibisse ao mundo sua intenção civilizatória.

Ao matarem Kadafi da forma bestial como o fizeram, os insurgentes – e, por tabela, o CNT – se igualaram aos piores crimes do ditador, fornecendo a quem se interessa pela sorte do mundo um gosto do que poderá ser a "nova" Líbia que prometem erigir.

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